terça-feira, 1 de julho de 2014

Sinfonias

Ecoa tudo que é ser.
Palavra lançada no infinito, o teu nome
- ou melhor: nada de infinito.
Este momento aqui, este, entre a luz que entra
e aquele sol que vai embora.
Com a mão repousada em meu pescoço,
sussurra o que se diz no meu ouvido.
Então ecoa.
Ecoa como tudo quer ser.
Na caverna, um que senta nu e molhado,
sibilando horrores, ouve.
Sorri. Um descanso. De quê?
Um descanso. Aonde?
O vento corre, um assobio.
Tuas paredes cantam sempre.
Socorrem-me essas suas sinfonias.

segunda-feira, 16 de junho de 2014

Histórias Sobre a Morte (IV)

I.
in stein
a rose has never been
morose

II.
no túmulo do mundo
minha avó
uma rosa é:
palavra lapidada
na pedra
antônia

III.
uma ausência me escreve
canções de permanência
retorno ao retorno a
dizer esta morte

IV.
minha avó era um móbile
nunca mo-
rosa acinzentada
o tempo fez
o corte

V.
a palavra rosa
forte a palavra
rosa forte a
palavra rosa forte

VI.
da minha avó
nunca cri na morte

segunda-feira, 28 de abril de 2014

este é o nosso segredo:
escrever nunca é o segredo.
é ser não esfinge mas édipo
decifrar, devorar, matar o pai
perfurar os olhos etc.

este aqui é o broche -
uma ponta aguda, os rios
de sangue em cada poema
gota é pouco

aqui veio morrer o sagrado
o inominável nominado
eis zeus e zeus se fez,
morreu aos cinquenta e oito
e deixou dois netos

e eis seus netos, assassinos
do avô: cortaram-lhe as rodas,
lançaram-nas ao mar - nada
aqui, aqui só, o Caos

o mundo é fácil, narciso vive
tudo é puro agrado
como vai? hasta la vista
até mais logo minha flor
e toda sorte virtuais

o horror, logo, isto
horror eu digo - eu grafo:
uma estátua queda no deserto
e os prodígios dos homens velhos
não valem nada mais - orfeu,
por deus, desvelai por nós!

domingo, 27 de abril de 2014

Histórias Sobre a Morte (III)

I.
a barbárie:
prender corpos em retângulos
nos porta-retratos
somos todos mortos

II.
ouvi de uma senhora:
"menino, pare com isso!
com a morte não se brinca"
hoje ainda a ouço, refeita
"menino, pare com isso!
com morte não se pode rimar"

III.
lançaram-se ao mar
rumo às terras indescobertas
alguns deles não saíram
do velho fim do mundo
outros conheceram o gigante
o resto foi buscar o fundo
todos se perderam no caminho
as terras são ainda indescobertas

IV.
pensei em escrever
a minha avó
num barco à vela
pensei na barbárie:
"com a morte
não se rima"

sábado, 29 de março de 2014

não se faz a estrada com os passos
nem os passos com a estrada
não se faz: se é
aquilo que quer dizer,
não se diz: se faz

não se segue nem conclui
o mundo é feito de pequenas
quebras
e o que vem nunca é
o que vai
(é uma
a escolha)

:
círculo o círculo
circunscreve
a
   s
s  i
   m

domingo, 15 de dezembro de 2013

Sobre Deus

Seus olhos estavam presos às infinitas telas que se multiplicavam pelo firmamento. Por cada olhar, a vida de um que nascia e morria em imensuráveis milissegundos, o choque da existência inteira estendida e entendida por cada célula como impossivelmente única. Deus, possuidor de todas as coisas, sempre sentado na terceira estrela mais brilhante, nos olhava como quem nos sonhava, milhares, milhões de pixels acumulados em experiências preenchidas de memórias.  Ele nos conhecia como quem conhece o mecanismo mais simples, e seu sorriso despejava sobre nós bênçãos sobre bênçãos, sem que nós nunca em nenhum momento as pedíssemos.

Deus não tinha a misericórdia do homem superior. Ao contrário, sua misericórdia andava entre nós e abaixo de nós, nas lamas mais sujas e nos becos mais escuros. Deus sentando nas estrelas nunca nos olhou de cima; Deus era pura alteridade e só conhecia os caminhos do horizonte. Não conhecia o mais vil e mais mesquinho, ou o mais triste e mais derrotado; ele o era. Babava profanidades e gritava seu ódio no silêncio imóvel do espaço e, seguidamente, retratava-se, compreendendo que não havia premeditação no mal: nem sequer havia o mal. O que havia era o humano e a sua eterna admiração por ele. Nada lhe parecia mais verdadeiro do que um homem tolo, que tropeça nos próprios pés e finge andar sem embaraços.

Um dia uma nave passou à esquerda da estrela onde morava Deus. Observou-os com grande interesse e atenção. Os astronautas saíam em busca de - em ordem de importância - um lar, um parque de diversões e algumas respostas. No lugar de tudo isso, encontraram uma grande pergunta: quem é aquele na estrela? Para cada um, Deus apareceu diferente: um pai deitado em uma maca; um cachorro raivoso; uma avó contando histórias para seus netos; um genocida odiado; uma adolescente negra recitando seus poemas. Para Deus, todos eles eram absolutamente únicos, seus passados, futuros e presentes aglutinados em um momento no tempo e no espaço, um ponto de coerência em uma floresta de luzes caóticas.

Do encontro, nasceu o entendimento. Os astronautas, mesmo sem saberem, sabiam. Choravam e sorriam, vestidos em seus capacetes, e reconheciam. Não éramos mais crianças perdidas flutuando no vazio, ou grandes filhos das estrelas cheios de promessas e fadados ao fracasso. Éramos, sim, tudo o que era impossível, tudo que era novidade. A existência era o que já é velho e já é belo em seus próprios termos; nós éramos a inexistência, aquilo que tem que se provar e que, tentando se provar, já está provado. Sabíamos agora: Deus sorria para nós como também sorria para todas as outras coisas, e isso nos tornava especiais, como eram especiais todas as outras coisas.

Sentando em sua estrela, a terceira mais brilhante, Deus morria lentamente. Era agora conhecido por nós, e se seus olhos continuavam atentos, suas telas já não eram mais infinitas. A ternura de uma divindade que definha era a condição para a nossa existência: todo o dia o céu brilhava mais forte e o que era humano se tornava mais humano. Deus, no seu último dia, desceu da estrela e se deitou no corpo da Terra, carinhoso, sentindo tudo que fomos, somos e seremos correndo pela sua carne, brincando em suas formas que eram ao mesmo tempo retas e curvas. Seu corpo com o nosso foram se unindo lentamente, como uma reza, e fomos juntos nos espalhando. Quando o último humano se uniu à última parte divina, vivemos todas as nossas histórias e cantamos todas as nossas canções.

No dia que raiou, uma criança nasceu chorando e seus olhos estavam presos às infinitas telas que se multiplicavam pelo firmamento.