terça-feira, 26 de novembro de 2013

Catálogo de Passados

Existem muitos passados.

I.
Quando eu nasci - talvez fora noite - não me lembro de ter chorado. Cortaram a barriga da minha mãe e dali saiu este, tão igual a todas as coisas. Aquele ali não sou eu, aquele que nasce. Ele é anterior a mim, é meu ancestral, e contém em si toda a sabedoria do desconhecimento absoluto.

II.
As amoras nunca mais existiram depois que envelheci. Gostava de esmagá-las mais do que de comê-las, e fingia mil atrocidades que teria tingido minhas mãos de um vermelho quase negro - as amoras foram o sangue da minha infância.

III.
A minha cidade pequena foi um dia a minha cidade grande. Toda brincadeira de rua parecia existir em um universo infinito e restrito: tanto começo quanto o fim existiam, mas a distância entre os dois era imensurável. Não havia perna longa o bastante para correr toda essa terra.

IV.
Um garoto certa vez me prendeu contra a parede, me segurando pela gola. Imediatamente retorci o nariz dele para me defender, o empurrei e saí correndo. Lembro do meu pai me dizer que da próxima vez que eu alguém me agredisse, eu deveria socá-lo no rosto. Algumas pessoas já me agrediram e eu nunca soquei ninguém.

V.
Meu professor de inglês, que eu detestava e que ele devia saber, disse em sala que eu fazia piadas e insistia no riso como uma forma de me esconder das pessoas. Eu ri e ele disse que isso corroborava com sua teoria. Um episódio, duas lições: nem todo holofote é bom e nem toda observação deve ser feita.

VI.
Em um dos nossos primeiros diálogos, ela me perguntou: "você tem tendências homossexuais?". Andávamos de mãos dadas. Um amigo perguntou se eu estava namorando com ela e por um segundo eu não soube responder. Devia já estar.

V.
Meus sapatos estavam sujos de vômito e minha cabeça balançava em incontáveis direções. Na mão, o celular: "estou sozinho e não consigo ver nada, me ajuda!". Estávamos brigados, mas ela não desligou. No dia seguinte nos encontramos e eu pude pedir outras desculpas.

VI.
Conhecemo-nos pela primeira vez no carro de um amigo, e mal nos olhamos. Quando nos vimos de novo eu nem a percebi, mas ela me percebeu. Beijamo-nos brevemente durante a festa enquanto eu pensava em uma das amigas dela. Mal sabia eu.

VII.
Cheguei cedo no bar para o evento e ela fazia parte da organização. Ajudei a montar algumas coisas e depois ficamos conversando por longas horas. Eu não pensava em mais nenhuma de suas amigas ou em qualquer outra coisa senão no seu sotaque indefinível.

VIII.
Na noite do meu aniversário, ela me contou que tinha uma namorado no exterior e que ele viria para Brasília. Na noite do meu aniversário, ganhei de presente um vinil, um disco e um adeus - mesmo que tenhamos nos visto outras vezes depois.

IX.
Conheci ela em uma festa enquanto afogava minhas mágoas numa latinha de cerveja. Ela era mais alta do que eu, mas disso não consigo me lembrar. Seu batom era vermelho e quando nos beijamos minha boca tornou-se também. Não nos vimos por muito tempo, até nos vermos novamente. Namoramos.

X.
Fomos juntos a um café e lá conhecemos uma de suas amigas. Ela era bonita - a mais bonita da mesa - e seu namorado era extremamente simpático. Meses depois, terminamos e eu passei a me encontrar com sua amiga.

XI.
Passamos nossa primeira noite emudecidos. Deitamo-nos um do lado do outro e tocamos nossos corpos com carinho, correndo os dedos pelas costas, pele contra pele. Não nos beijamos, mas talvez nunca tenhamos querido um ao outro como naquele momento.

XII.
Viajamos juntos, mais seu irmão e uma de suas amigas. A sua beleza era maior quando saía do banho: com o corpo enrolado em sua toalha e o cabelo ainda molhado que se permitia algumas bagunças proibidas aos cabelos secos.

XIII.
Nos encontramos novamente, como sempre nos encontramos. Ela não me pergunta mais se tenho tendências homossexuais, e os nossos sorrisos são cheios de reconhecimento: vivemos e doemos juntos muita coisa. O nosso beijo não é só esse, mas é todos os outros - o passado marca os nossos toques.

XIV.
Quando eu nasci - talvez fora noite - não me lembro de ter chorado. Quando eu nasci, não me lembro de nada. Ele que nasceu é anterior a mim, um ancestral abençoado pelo desconhecimento. Ele não me conhece e a mim só é permitido imaginá-lo. Ele, esse do quando eu nasci, só se assemelha a mim quando escrevi: "Existem muitos passados". E continuou se assemelhando a cada linha que escrevi. E mesmo aqui, nesse ponto final, aquele que quando nasci a mim se assemelha.

Quando nasci - talvez fora agora - não me lembro de ter chorado.

segunda-feira, 25 de novembro de 2013

Querida Luíza,

Escrevo de muito longe.

Lembra, Luíza, quando eu te carreguei no colo? Talvez você não lembre; talvez você nem seja. Eu me lembro e eu te amei, querida. Eu me lembro que te amei. Os seus olhos arregalados (ou serão eles mais fechados?) me viam e os meus olhos arregalados (ou serão eles mais enrugados?) te refletiam. E quando nos encontramos pela primeira vez, no limite daqueles campos, eu de um lado e você do outro, lembra como você não me conheceu? Você me reconhece, Luíza? Eu te vi naquelas fotos antigas e naquelas fotos novas; sua vida tocou os dois extremos de um tempo, o mais passado e o mais futuro, o ponto de origem dessas ruínas circulares.

A casa da rua principal agoniza lentamente e em seus últimos suspiros ela sussurra seu nome. Como você foi embora daqui, Luíza?, e como você estará? A cidade atinge sua alta hora e batem os sinos da Catedral; o abismo se aproxima e, Luíza, você se foi. O aqui é insustentável; o antes é invisível; o depois é inalcançável; você existe longe do tempo e no todo do espaço. Te vi no limite dos campos e você não me viu. Depois, te carreguei. Antes, você morreu. Agora, você é.

Luíza, não te preocupa que você é jovem. Jovem e bonita como as rugas da sua mãe. Lembre-se que a vida é infinita - mas não a minha. Lembre-se que tudo o que você será um dia não foi: a graça está nisso. Lembre-se que não há tempo exceto todo o do mundo. Lembre-se que quando eu te carregar no colo, eu te amo. Lembre-se que quando você me carregou no colo, eu era novo e você não era.

Somos duas crianças, Luíza, brincando no parque, somos dois idosos, Luíza, sentados no parque.

Somos e seremos, Luíza.

Manda tua mãe me escrever.

Um beijo e uma bênção,

Arthur.

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Ruínas

Um homem atravessa o deserto. O sol tinge as areias de dourado e seus passos cruzam para o sul, além daquele vale. O rosto do homem é a ruína que ele busca; pilares de concreto e pedras derrubadas povoam essas terras desabitadas. O homem se aproxima das ruínas e os esqueletos não o percebem.

"Os mortos estão fartos de nós", pensa o homem. Os ossos não respondem. Nunca houve humano que pudesse fazê-los falar. "Peço perdão pelo incômodo", fala o homem, "mas venho aqui em busca de algo que vocês possuem".  As caveiras deitadas no chão não respondem.

O homem olha para o horizonte. Além daquele deserto estava a cidade que abandonou, fugido. O seu pai lhe disse antes de sua peregrinação: "Vá ao sul e chegue nas ruínas. Lá, os mortos sussurrarão o seu caminho e você estará livre. Não volte".

O peregrino fez silêncio e tentou ouvir o som que os mortos fazem. O vento sibilava e além disso não havia nada. Serão essas as minhas ruínas?", pensou o peregrino. Para todo o lado, o deserto era só areia e no vento não havia voz que lhe guiasse.

O peregrino se ajoelhou ao lado dos ossos e pediu silenciosamente por guia. "Lá, os mortos sussurrarão o seu caminho e você estará livre". Uma rajada de vento cortou a ruína, levantou a areia e cegou o estrangeiro, que se levantou desesperado e tropeçou seu caminho para longe.

Fugindo da tempestade de areia, o estrangeiro correu para o sul. Em meio aos ventos violentos, ouviu nitidamente a voz de seu pai: "Não volte. Não volte. Não volte". O estrangeiro subiu uma duna e limpou seus olhos com o resto de água do seu cantil. Do alto do aclive, o estrangeiro viu, estendida sob si, uma cidade em ruínas, extensa como um labirinto, habitada por infinitas vozes sussurrantes.

O estrangeiro desce o aclive em direção às ruínas. Seus olhos molhados, cansados por eras e cheios de dor e beleza, se põem sobre as pedras secas. Em cima delas, um esqueleto cujas vestes ele reconhecia tão bem. "Vá ao sul e chegue nas ruínas. Lá, os mortos sussurraram o seu caminho e você estará livre. Não volte". Os ossos de seu pai, deitados na frente de sua cidade arruinada, fazem silêncio e o vento que os envolve não corre em nenhuma direção.

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Uma Tristeza

meu passado não é pomar
eu cresci com o ferro
e com as barras
e passarinho nunca piou por aqui

não conheci os prazeres da fruta vermelha
nem joguei pelada em campos de barro
a minha memória é uma sala escura
de pensamentos congestionados:
me esqueço todo dia
da meta bucólica
de saudosas malocas
de tempos enevoados

a minha lápide de concreto
virá com o epitáfio:
"Aqui jaz Arthur,
o amemoriado"