domingo, 15 de dezembro de 2013

Sobre Deus

Seus olhos estavam presos às infinitas telas que se multiplicavam pelo firmamento. Por cada olhar, a vida de um que nascia e morria em imensuráveis milissegundos, o choque da existência inteira estendida e entendida por cada célula como impossivelmente única. Deus, possuidor de todas as coisas, sempre sentado na terceira estrela mais brilhante, nos olhava como quem nos sonhava, milhares, milhões de pixels acumulados em experiências preenchidas de memórias.  Ele nos conhecia como quem conhece o mecanismo mais simples, e seu sorriso despejava sobre nós bênçãos sobre bênçãos, sem que nós nunca em nenhum momento as pedíssemos.

Deus não tinha a misericórdia do homem superior. Ao contrário, sua misericórdia andava entre nós e abaixo de nós, nas lamas mais sujas e nos becos mais escuros. Deus sentando nas estrelas nunca nos olhou de cima; Deus era pura alteridade e só conhecia os caminhos do horizonte. Não conhecia o mais vil e mais mesquinho, ou o mais triste e mais derrotado; ele o era. Babava profanidades e gritava seu ódio no silêncio imóvel do espaço e, seguidamente, retratava-se, compreendendo que não havia premeditação no mal: nem sequer havia o mal. O que havia era o humano e a sua eterna admiração por ele. Nada lhe parecia mais verdadeiro do que um homem tolo, que tropeça nos próprios pés e finge andar sem embaraços.

Um dia uma nave passou à esquerda da estrela onde morava Deus. Observou-os com grande interesse e atenção. Os astronautas saíam em busca de - em ordem de importância - um lar, um parque de diversões e algumas respostas. No lugar de tudo isso, encontraram uma grande pergunta: quem é aquele na estrela? Para cada um, Deus apareceu diferente: um pai deitado em uma maca; um cachorro raivoso; uma avó contando histórias para seus netos; um genocida odiado; uma adolescente negra recitando seus poemas. Para Deus, todos eles eram absolutamente únicos, seus passados, futuros e presentes aglutinados em um momento no tempo e no espaço, um ponto de coerência em uma floresta de luzes caóticas.

Do encontro, nasceu o entendimento. Os astronautas, mesmo sem saberem, sabiam. Choravam e sorriam, vestidos em seus capacetes, e reconheciam. Não éramos mais crianças perdidas flutuando no vazio, ou grandes filhos das estrelas cheios de promessas e fadados ao fracasso. Éramos, sim, tudo o que era impossível, tudo que era novidade. A existência era o que já é velho e já é belo em seus próprios termos; nós éramos a inexistência, aquilo que tem que se provar e que, tentando se provar, já está provado. Sabíamos agora: Deus sorria para nós como também sorria para todas as outras coisas, e isso nos tornava especiais, como eram especiais todas as outras coisas.

Sentando em sua estrela, a terceira mais brilhante, Deus morria lentamente. Era agora conhecido por nós, e se seus olhos continuavam atentos, suas telas já não eram mais infinitas. A ternura de uma divindade que definha era a condição para a nossa existência: todo o dia o céu brilhava mais forte e o que era humano se tornava mais humano. Deus, no seu último dia, desceu da estrela e se deitou no corpo da Terra, carinhoso, sentindo tudo que fomos, somos e seremos correndo pela sua carne, brincando em suas formas que eram ao mesmo tempo retas e curvas. Seu corpo com o nosso foram se unindo lentamente, como uma reza, e fomos juntos nos espalhando. Quando o último humano se uniu à última parte divina, vivemos todas as nossas histórias e cantamos todas as nossas canções.

No dia que raiou, uma criança nasceu chorando e seus olhos estavam presos às infinitas telas que se multiplicavam pelo firmamento.

Ao nosso ancestral comum

ao nosso ancestral comum
que morreu sozinho
em um floresta qualquer
e que nos deixou de herança
essa tristeza de existir

ao nosso ancestral comum
que não falou palavra
e que não chorou lágrima
quando morreram teus pais
nas mãos do esquecimento

ao nosso ancestral comum
que agrediu seus pares
e descobriu o sexo
- descobriu as armas
e matou o seu redor

ao nosso ancestral comum
que incendiou a si mesmo
nos tempos dos deuses mortos
e destruiu as estátuas
para fazê-las novas

ao nosso ancestral comum
que virou a casca
da qual nasci
e que odiei
por me deixar sua marca

eu escrevo.

sábado, 7 de dezembro de 2013

13 de Maio de 2027, Abolição da Escravatura

A escrivaninha de mogno cuspia fumaça enquanto o barômetro fumava o barão. Nas lavouras de algodão, os cães latiam suas tristezas: no dia 13 de maio de 2027, a princesa Isabel assinou nas paredes de um edifício abandonado a abolição da escravatura. Depois de gerações sofrendo estavam libertos os que foram um dia escravizados, e os monumentos imóveis dessa terra observavam os nossos majestosos passos em direção ao futuro.

Os grandes capitães da indústria, retorcendo seus bigodes de feno, reuniram-se em um ginásio, sentados em cadeiras de plástico antes ocupadas por grandes garrafas que discutiam seus vícios. Os capitães, com suas carrancas desenhadas a giz-de-cera e seus chapéus do trapo mais fino, buscavam remediar o irremediável. Os carros haviam buzinado suas vontades: não mais haveria nessa terra gloriosa o horror da escravidão, que tanto manchava a nossa imagem internacional. Agora nós seríamos capazes de olhar para os convidados estrangeiros com a cabeça erguida e o sorriso confiante da nossa pureza. "O que é irremediável remediado está", cacarejou um dos capitães, e os outros o acompanharam: tudo se resolveria.

A nação convulsionava em festa. Os sóis sambavam todos e os céus marcavam o ritmo em suas latinhas de cerveja. Seríamos modernos! Armas e peixeiras, todas as classes de cidadãos se uniam nas ruas e cantavam a nossa grandeza nacional, a nossa hombridade individual, a nossa vitória humana. Os garçons serviam aos palácios coquetéis molotov, que tentavam seduzir as estruturas mais jovens - e de curvas mais acentuadas - com suas grandes vozes embargadas. As togas e perucas herdadas dos nossos pretéritos desejos brindavam à saúde e à eternidade do novo.

Fardados da bandeira, os condomínios marcharam pelas cidades das ruas. Corrigiram todos os nossos enganos com uma pichação e agora construíam todos essa poderosa alvorada esperada desde que Dom Sebastião pegou sua moto e fugiu para o fundo do espaço. Em algum firmamento, o lugar sorria para nós, e Deus, filho de um multimilionário falido com um torno mecânico, nos abençoava com seu silêncio aprovador.

Existiam, claro, os descrentes. Não viviam perseguidos, como imaginavam que aconteceria - nunca viveram numa ditadura, não iriam vivê-la agora. Os hereges, ao contrário, eram silenciosamente celebrados. Todas as placas que insistiam em acusar o suposto absurdo da nossa conquista - e o que teria de absurdo nisso tudo? - geravam a confirmação que precisavam: podem discordar de nós, já que toda unanimidade, afinal, é burra, como nos ensinou o nosso Velho Presidente e Grande Cidadão. Na nossa infinita festa, entrariam todos os cidadãos.

Então tinham os antigos escravos, barrados na entrada. Homens e mulheres, crianças e idosos, milhares, milhões de pessoas andavam sem direção pelas esquinas esquecidas de um país em polvorosa.

E o sol nasceria novamente no horizonte dos justos e dos bons.

quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

Uma mulher.

existe muita beleza em tudo isso. olhamo-nos um ao outro, pupilas dilatadas, esquecidos. você dista de mim o exato comprimento de uma vida inteira. seus cabelos são mais curtos do que eu quereria, mas você não se ajoelha a mim, não, não. e se se ajoelha é por me ver fazer o mesmo. observo a sua mão que domina o movimento preciso de lançar-se ao mundo. seu sorriso é torto, com aquelas sacanagens que só quem viu e viveu é capaz, e a curva da sua bochecha cabe perfeitamente na curva da minha mão: ó quão semelhante estás.
eu te amo, minha irmã impossível, minha história mal contada. eu te amo, minha filha não gestada.
aproximo-me de ti com vontade de explorá-la, milimetricamente juntada por peles e dentes e ossos. seus olhos olham como meus olhos e seus seios me acusam como indicador algum acusou antes. meus dedos se aproximam do seu braço, que antes de tudo parece tão meu. já vi essa marca, já vi essa cicatriz… seus peitos mantém a acusação, e seu sorriso torto me entorta. passeio pelos teus vales e pelos, teus bens e teus males. eu já te vi algum outro dia? ou já caminhamos as mesmas veredas - e nos desencontramos em cada bifurcação? seu sorriso me lembra o meu sorriso e se teus peitos me acusam, te acusam os meus. e se seu pinto se desvia para a esquerda, é por confundir-se com aquele que é o meu.
eu te amo, minha indissociável. eu te amo, minha oposta. eu te amo, minha mesma. eu te amo, eu mesmo.

terça-feira, 26 de novembro de 2013

Catálogo de Passados

Existem muitos passados.

I.
Quando eu nasci - talvez fora noite - não me lembro de ter chorado. Cortaram a barriga da minha mãe e dali saiu este, tão igual a todas as coisas. Aquele ali não sou eu, aquele que nasce. Ele é anterior a mim, é meu ancestral, e contém em si toda a sabedoria do desconhecimento absoluto.

II.
As amoras nunca mais existiram depois que envelheci. Gostava de esmagá-las mais do que de comê-las, e fingia mil atrocidades que teria tingido minhas mãos de um vermelho quase negro - as amoras foram o sangue da minha infância.

III.
A minha cidade pequena foi um dia a minha cidade grande. Toda brincadeira de rua parecia existir em um universo infinito e restrito: tanto começo quanto o fim existiam, mas a distância entre os dois era imensurável. Não havia perna longa o bastante para correr toda essa terra.

IV.
Um garoto certa vez me prendeu contra a parede, me segurando pela gola. Imediatamente retorci o nariz dele para me defender, o empurrei e saí correndo. Lembro do meu pai me dizer que da próxima vez que eu alguém me agredisse, eu deveria socá-lo no rosto. Algumas pessoas já me agrediram e eu nunca soquei ninguém.

V.
Meu professor de inglês, que eu detestava e que ele devia saber, disse em sala que eu fazia piadas e insistia no riso como uma forma de me esconder das pessoas. Eu ri e ele disse que isso corroborava com sua teoria. Um episódio, duas lições: nem todo holofote é bom e nem toda observação deve ser feita.

VI.
Em um dos nossos primeiros diálogos, ela me perguntou: "você tem tendências homossexuais?". Andávamos de mãos dadas. Um amigo perguntou se eu estava namorando com ela e por um segundo eu não soube responder. Devia já estar.

V.
Meus sapatos estavam sujos de vômito e minha cabeça balançava em incontáveis direções. Na mão, o celular: "estou sozinho e não consigo ver nada, me ajuda!". Estávamos brigados, mas ela não desligou. No dia seguinte nos encontramos e eu pude pedir outras desculpas.

VI.
Conhecemo-nos pela primeira vez no carro de um amigo, e mal nos olhamos. Quando nos vimos de novo eu nem a percebi, mas ela me percebeu. Beijamo-nos brevemente durante a festa enquanto eu pensava em uma das amigas dela. Mal sabia eu.

VII.
Cheguei cedo no bar para o evento e ela fazia parte da organização. Ajudei a montar algumas coisas e depois ficamos conversando por longas horas. Eu não pensava em mais nenhuma de suas amigas ou em qualquer outra coisa senão no seu sotaque indefinível.

VIII.
Na noite do meu aniversário, ela me contou que tinha uma namorado no exterior e que ele viria para Brasília. Na noite do meu aniversário, ganhei de presente um vinil, um disco e um adeus - mesmo que tenhamos nos visto outras vezes depois.

IX.
Conheci ela em uma festa enquanto afogava minhas mágoas numa latinha de cerveja. Ela era mais alta do que eu, mas disso não consigo me lembrar. Seu batom era vermelho e quando nos beijamos minha boca tornou-se também. Não nos vimos por muito tempo, até nos vermos novamente. Namoramos.

X.
Fomos juntos a um café e lá conhecemos uma de suas amigas. Ela era bonita - a mais bonita da mesa - e seu namorado era extremamente simpático. Meses depois, terminamos e eu passei a me encontrar com sua amiga.

XI.
Passamos nossa primeira noite emudecidos. Deitamo-nos um do lado do outro e tocamos nossos corpos com carinho, correndo os dedos pelas costas, pele contra pele. Não nos beijamos, mas talvez nunca tenhamos querido um ao outro como naquele momento.

XII.
Viajamos juntos, mais seu irmão e uma de suas amigas. A sua beleza era maior quando saía do banho: com o corpo enrolado em sua toalha e o cabelo ainda molhado que se permitia algumas bagunças proibidas aos cabelos secos.

XIII.
Nos encontramos novamente, como sempre nos encontramos. Ela não me pergunta mais se tenho tendências homossexuais, e os nossos sorrisos são cheios de reconhecimento: vivemos e doemos juntos muita coisa. O nosso beijo não é só esse, mas é todos os outros - o passado marca os nossos toques.

XIV.
Quando eu nasci - talvez fora noite - não me lembro de ter chorado. Quando eu nasci, não me lembro de nada. Ele que nasceu é anterior a mim, um ancestral abençoado pelo desconhecimento. Ele não me conhece e a mim só é permitido imaginá-lo. Ele, esse do quando eu nasci, só se assemelha a mim quando escrevi: "Existem muitos passados". E continuou se assemelhando a cada linha que escrevi. E mesmo aqui, nesse ponto final, aquele que quando nasci a mim se assemelha.

Quando nasci - talvez fora agora - não me lembro de ter chorado.

segunda-feira, 25 de novembro de 2013

Querida Luíza,

Escrevo de muito longe.

Lembra, Luíza, quando eu te carreguei no colo? Talvez você não lembre; talvez você nem seja. Eu me lembro e eu te amei, querida. Eu me lembro que te amei. Os seus olhos arregalados (ou serão eles mais fechados?) me viam e os meus olhos arregalados (ou serão eles mais enrugados?) te refletiam. E quando nos encontramos pela primeira vez, no limite daqueles campos, eu de um lado e você do outro, lembra como você não me conheceu? Você me reconhece, Luíza? Eu te vi naquelas fotos antigas e naquelas fotos novas; sua vida tocou os dois extremos de um tempo, o mais passado e o mais futuro, o ponto de origem dessas ruínas circulares.

A casa da rua principal agoniza lentamente e em seus últimos suspiros ela sussurra seu nome. Como você foi embora daqui, Luíza?, e como você estará? A cidade atinge sua alta hora e batem os sinos da Catedral; o abismo se aproxima e, Luíza, você se foi. O aqui é insustentável; o antes é invisível; o depois é inalcançável; você existe longe do tempo e no todo do espaço. Te vi no limite dos campos e você não me viu. Depois, te carreguei. Antes, você morreu. Agora, você é.

Luíza, não te preocupa que você é jovem. Jovem e bonita como as rugas da sua mãe. Lembre-se que a vida é infinita - mas não a minha. Lembre-se que tudo o que você será um dia não foi: a graça está nisso. Lembre-se que não há tempo exceto todo o do mundo. Lembre-se que quando eu te carregar no colo, eu te amo. Lembre-se que quando você me carregou no colo, eu era novo e você não era.

Somos duas crianças, Luíza, brincando no parque, somos dois idosos, Luíza, sentados no parque.

Somos e seremos, Luíza.

Manda tua mãe me escrever.

Um beijo e uma bênção,

Arthur.

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Ruínas

Um homem atravessa o deserto. O sol tinge as areias de dourado e seus passos cruzam para o sul, além daquele vale. O rosto do homem é a ruína que ele busca; pilares de concreto e pedras derrubadas povoam essas terras desabitadas. O homem se aproxima das ruínas e os esqueletos não o percebem.

"Os mortos estão fartos de nós", pensa o homem. Os ossos não respondem. Nunca houve humano que pudesse fazê-los falar. "Peço perdão pelo incômodo", fala o homem, "mas venho aqui em busca de algo que vocês possuem".  As caveiras deitadas no chão não respondem.

O homem olha para o horizonte. Além daquele deserto estava a cidade que abandonou, fugido. O seu pai lhe disse antes de sua peregrinação: "Vá ao sul e chegue nas ruínas. Lá, os mortos sussurrarão o seu caminho e você estará livre. Não volte".

O peregrino fez silêncio e tentou ouvir o som que os mortos fazem. O vento sibilava e além disso não havia nada. Serão essas as minhas ruínas?", pensou o peregrino. Para todo o lado, o deserto era só areia e no vento não havia voz que lhe guiasse.

O peregrino se ajoelhou ao lado dos ossos e pediu silenciosamente por guia. "Lá, os mortos sussurrarão o seu caminho e você estará livre". Uma rajada de vento cortou a ruína, levantou a areia e cegou o estrangeiro, que se levantou desesperado e tropeçou seu caminho para longe.

Fugindo da tempestade de areia, o estrangeiro correu para o sul. Em meio aos ventos violentos, ouviu nitidamente a voz de seu pai: "Não volte. Não volte. Não volte". O estrangeiro subiu uma duna e limpou seus olhos com o resto de água do seu cantil. Do alto do aclive, o estrangeiro viu, estendida sob si, uma cidade em ruínas, extensa como um labirinto, habitada por infinitas vozes sussurrantes.

O estrangeiro desce o aclive em direção às ruínas. Seus olhos molhados, cansados por eras e cheios de dor e beleza, se põem sobre as pedras secas. Em cima delas, um esqueleto cujas vestes ele reconhecia tão bem. "Vá ao sul e chegue nas ruínas. Lá, os mortos sussurraram o seu caminho e você estará livre. Não volte". Os ossos de seu pai, deitados na frente de sua cidade arruinada, fazem silêncio e o vento que os envolve não corre em nenhuma direção.

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Uma Tristeza

meu passado não é pomar
eu cresci com o ferro
e com as barras
e passarinho nunca piou por aqui

não conheci os prazeres da fruta vermelha
nem joguei pelada em campos de barro
a minha memória é uma sala escura
de pensamentos congestionados:
me esqueço todo dia
da meta bucólica
de saudosas malocas
de tempos enevoados

a minha lápide de concreto
virá com o epitáfio:
"Aqui jaz Arthur,
o amemoriado"

terça-feira, 15 de outubro de 2013

O Reinado


Histórias Sobre a Morte (II)

I.
lápides seguem lápides
o sol é forte
o céu é seco
um cemitério é só
um cemitério

II.
me trancaram 
num baú
na casa da minha avó.

depois morri
e me trancaram 
num caixão

III.
um baú quebrou
na avenida central
e sonhamos
como sonham sardinhas:
túmulos 
com uma vista melhor

IV.
minha avó viveu
na minha cidade
e agora mora
em outros planos
com uma vista melhor

V.
blocos seguem blocos
o sol é forte
o céu é seco
brasília é só
brasília

sexta-feira, 9 de agosto de 2013

Toque em Três Atos

seu toque
              repele
       minha pele

me  abre
 me sangra
mefecha

        minha pele
seu toque
               repele

terça-feira, 23 de julho de 2013

Uma Angústia

quantas malas se armam
para morar numa casa nova?

abraça velhos vestidos
manchados de saudade
de mágoa

move-se como se move um caracol
se arrasta e arrasta nas suas costas
tuas vidas

vis-à-vis, seus olhos
não mentem
seu passado
é presente

e eu, que queimo
tudo
numa fogueira
pra repetir
tudo
na terça-feira,
me choco

vou rasgar suas roupas velhas
seus planos
vou te abrir ao meio
e sorrir para o novo

você despida na minha frente
e eu te olhando

não se vista com minhas angústias.

terça-feira, 4 de junho de 2013

Histórias Sobre a Morte

I.
Magno chegou a uma grave
conclusão:
tudo que move,
morre

Magno de medo virou árvore
Cortaram-no e da carne fizeram
Caixões de mogno
Enterraram minha avó em um desses

II.
A Terra ficou sabendo de Galileu
Que "eppur si muove!"
Até hoje não dorme direito
Dia desses chega o dia dela.

III.
Minha avó quando jovem se movia
Era esperta, sabiá
Envelheceu e foi parando de mover
Era esperta, sabia
Hoje descansa imóvel
no seu lindo caixão de Magno

IV.
Da Terra, do mogno, da avó
Nasceu uma linda flor
Móvel
A flor ainda perdura.

domingo, 19 de maio de 2013

Anatomonotonia, um ódio a um toque


Odeio esse toque que caminha meu corpo como discovered country
Esse toque pretensioso, frio, firme e cartógrafo
Esse toque de quem mora em mim há muito tempo
e já pensa conhecer todos os meus segredos e caminhos, ruas e becos
Que me pensa máquina, com:
botões,
conexões,
ligações em paralelo e,
abaixo de tudo,
lógica.

Odeio esse toque repetido, esse eterno retorno às seguras terras
Os dedos viciados, dedos suburbanos
A pele pouco estrangeira, velha
A boca seca, a língua nervosa que roça os cantos,
sem encanto.
Olhos que caem sobre mim e não me veem.
“De você eu já sei”, dizem eles, cheios de enganos.

O que seu toque não sabe é que perco a mim
dia sim,
dia sim.
Despelo, pelo.
E a cada ciclo sou carne viva, queimada.
Mas você já me sabe.
Ah, você já me sabe...
Sou sua sesmaria, seu latifúndio, sua terra colonizada.

Só não sente, toque seu,
que teu arar não cria nada.
Daqui em pele e sempre
eu sou terra arrasada.

domingo, 28 de abril de 2013

Reducto ad Eu Mesmo


Vou escrever um texto que não seja sobre mim. Um desses que não fala absolutamente nada sobre minha vida. Um texto completamente livre da minha presença incômoda. Segue o texto, cheio de eu.

Vejam as montanhas. Vejam os mares, os rios, os lagos, a chuva. O Planalto Central. Analisemos as favelas penduradas em morros, assistindo ao espetáculo. Paris, Texas, Londres, Braxília. Esquece o ego. Zera o ego, zera a reza, vamos falar de outras coisas. As estrelas e a metafísica, vamos pensar em nada. Os buracos negros que sugam tudo ao seu redor, a minha solidão - puta merda, reducto ad eu mesmo, vou parar de cair em mim. Se eu escrever sobre meus pares, estou falando do Arthur? Paremos com essa lenga-lenga de terapia escrita, de textos autobiograficamente expositivos. O importante é o átomo, a estrada, a rosa, Hiroshima e a condição humana. São os problemas de peso que esmagam a mesquinharia cotidiana. O problema é a razão e o empírico – estamos de piriri. Morte ao sou! Morte ao somos! Abaixo a identidade, abaixo a aparência, abaixo a essência, abaixo tudo que nos constitui. Busquemos a gravidade da existência fora do indivíduo. O que importa nessa vida não é a vida, é tudo que transcende a vida, tudo que cospe na vida, tudo que está cansado e entediado com a vida. O existir só existe enquanto zero – o zero que só foi existir com os árabes ou talvez antes diria alguém que sabe do que está falando. Como somos bobos, atrás do nosso sentido. O problema da humanidade é esse desejo colegial de encontrar a verdade. A verdade, se existe, é feia demais pros nossos olhos mal acostumados com as belezas desse mundo-cão-com-pedigree. A verdade é velha, torta, banguela e está cagando pra gente – a verdade fede de merda. Por isso digo: vejam as montanhas. Mares, rios, lagos etc. Esquece você, esquece eu, vamos nos esquecer, esquecer de quê?, a ideia é essa. Vejamos tudo que é além de nós. Mas o que é além de nós? Além de nós é só abismo. E a questão aqui é: o abismo está te encarando. Vai encarar?

segunda-feira, 15 de abril de 2013

Há Beleza


Há beleza no fim de tarde cheio de marasmo. Há beleza sentados na cama dos meus pais discutindo besteiras. Há beleza nas cinzas do cigarro e nas cinzas do meu avô; há beleza na banguela de São Paulo e na de minha avó; há beleza nos meus pés e aos meus pés também há beleza.

Há beleza nos sete pecados e há beleza nas sete virtudes; há beleza nas barbas cheias e há beleza nos rostos sem pelo; o ouro dos palácios ofusca a beleza, e há beleza no ouro dos palácios; há beleza no abismo e há beleza no eco; sem ela há beleza; no violão há beleza; no retrato envelhecido, esquecido e empoeirado do contraparente que nunca tive há beleza. Há beleza no seu tamanho, no seu minúsculo.

As cicatrizes do braço gritam coragem e sangram beleza; em tudo que a bailarina não tem há beleza e na bailarina beleza há; no amanhecer, há beleza; no entardecer, há beleza; no anoitecer, há beleza. Nas frases de efeito o belo se perdeu no tempo, mas continua; os templos são mais belos na devoção do povo.

No questionamento entediado dos filósofos sobre “o que é o belo” descansa, adormecida, a beleza. Na calça folgada a beleza escorre, perna acima, perna abaixo; no emaranhado de pernas da cama também há beleza. A beleza da grandiosidade é grande, a beleza pequeneza é grande.

A família reunida ao redor da mesa come beleza; os meninos na rua brincam com ela; há beleza nas mãos e no passo dos gatunos. Cai uma chuva lá fora e cai em beleza, os carros rodando águas e a lua refletindo sobre o que tem para a noite.

A tela do cinema, projetando nos espectadores o mundo, quer o belo; beleza também querem as letras que vadiam nas páginas amarelas. Belo belo quero quero, viver é fundamental. Há beleza na linha do horizonte e há também no beco. O beco é que mais importa. Qualquer cidadezinha também tem boniteza.

Na repetição de beleza há beleza.

O sentido de beleza perde-se na banalização, e na banalização a beleza floresce: por todo lado estão jardins – subterrâneos, suspensos, japoneses. As estrelas do céu e a formiga do chão se comunicam por beleza; o rio corre beleza e a beleza corre nos fios de cabelo do chefe do escritório, que parece ignorá-la mas que também sonha.

A beleza não é seletiva. A beleza não é moral. A beleza não julga. A beleza nos ri, morando nas coisas menores, ri do nosso desejo de mais. A beleza está esquecida em nós, mas a beleza está. A beleza há.

Em tudo construí uma casa, e nessa casa mora um corpo que me pergunta: “cabe quanto coração?”.

sábado, 13 de abril de 2013

No Hay Texto!: Irrelevância Nº 01


(Sobe a cortina sem aplausos)

No hay texto!

O que se lê aqui não é o que se lê. O autor não sabe nem nunca soube o que quis escrever. Letras se juntam em palavras, palavras em frases, frases em irrelevâncias. O que importa é o contexto, e o contexto não se é, só há trapaça. 

No hay texto!

Tudo é simulação. Eu escrevo simulação. Você capta simulação. Uma folha branca diria mais, mas sinceridade excessiva é patologia do espírito. Uma folha branca diria mais e não seria ouvida, pois uma folha branca não se repete, excetuando-se todas as vezes.

No hay texto!

Esgotaram-se as questões e só sobraram respostas. Não mais rasuramos: copiamos com excelência e com primazia. Eu sou a cópia da cópia da cópia da cópia, mas comparado à primeira eu sou muito mais original.

No hay texto!

Niilismo é facilidade. “Nada faz sentido, tudo é caos, a cerveja acabou”. As ideias fedem a mofo, mas ouvem aplausos de coisa nova. O oposto também é fácil. Tudo é fácil. Proponho aqui uma velha revolução: o sentido não há, mas existe em todas as coisas (alguém pergunta da plateia “e esse cheiro de naftalina?”).

No hay texto!

A mente aguenta impropérios. Hoje mesmo, enquanto a razão olhava pro outro lado, fiz flutuar uma bola e depois corri na velocidade da luz. Mas isso não é verdade. A verdade é que eu não sei, e eu não sei se é verdade.

No hay texto!

Voo sobre as asas de tudo o que penso e tudo o que penso não é mais do que uma pluma. O vento bate e leva a pluma embora e eu não voo mais. Mas vou.

No hay texto!

(Alguém pergunta da plateia “texto? Que texto?” Outro responde “esse que ele acabou agora”. Muitos dormem. Desce a cortina)

quinta-feira, 11 de abril de 2013

Velhice

Hoje me olhei no espelho e me vi velho. O rosto era o mesmo: mesmo cabelo bagunçado, mesma barba por fazer, mesmos olhos, boca e nariz. Mas todos velhos. Como se o tempo que eu não vivi franzisse o meu cenho e arqueasse as minhas costas. Todas as minhas experiências e inexperiências decidiram manchar-me a pele e tingir-me os dentes. Os meus primeiros passos, aquela verruga na ponta do queixo. As brincadeiras de infância com meu primo, as manchas pretas em minhas mãos. A minha primeira briga, as unhas longas e opacas. O meu primeiro beijo, aquela banguela. O meu primeiro amor, as pernas arqueadas. Meus pais, minha irmã, minha família, meus amigos, minhas conquistas, minhas derrotas, meus movimentos, meus desejos, minhas frustrações, meus conhecimentos, minha ânsia e meu vômito, tudo me marcando o corpo, tornando-me mais velho, mais sábio.

E após assistir no espelho a uma vida de 18 anos que parece se estender por 100 – parte por vivências, parte por angústias – você é o trecho que me envelhece mais. Você, que ao meu lado rejuvenesceu-me tantas vezes e com tanto prazer agora é a parte pior do meu delírio. Você é as minhas dores de velhice. Você, que comparada com a minha maioridade centenária não equivale a algumas estações, é as minhas dores de velhice, vinda em ondas. Aguda. Sofrida. Imobilizadora.

quinta-feira, 21 de março de 2013

Vida e Morte de um Dia

O dia envelhecia triste. O que havia ocorrido com os sonhos de amanhecer? “Vou brilhar como nunca ninguém viu, tocando tudo da terra com meus dedos de luz. Tardarei em beleza”. Tudo é promessa no nascer do sol.

Infelizmente, o dia não pode prever tempo. As nuvens tomaram o céu de assalto, sufocando as manhãs e proibindo o luzir. Hoje era dia de escuro e o dia não sabia. Tentou lutar contra esses nimbos obstáculos. Buscava um rasgo nas nuvens para que pudesse pelo menos ver as coisas terrenas e talvez iluminá-las um tanto, um pouco: uma rajada de sol, uma lembrança da sua presença exilada.

Passavam horas e nada de luminar. A noite já se aproximava, lentamente, inevitável, para desespero do dia-fim de tarde. Às quatro em ponto, começou a chorar seus sonhos despedaçados em gotas, baixinho, fino. Sentia-se deitar nas árvores, nos homens, nos prédios, sem os ver e sem ser visto. Minuto a minuto, esvaziou-se sobre a terra, temeroso da morte.

A Natureza, mãe atenta, ouvindo o choro moroso do diminuto dia, decidiu fazê-lo belo nos momentos finais, um vestido mortuário de se lembrar sempre. Expulsou os nimbos com ventos de ordenança e pintou o céu de fúria, sonho e calor - azul, roxo, laranja, vermelho. As lágrimas chovidas do quase posto brilhavam diamantes na ponta das gramas verdes, dos cachos multicor das moças, das casas marrom-suburbano, sobre o asfalto úmido e sobre os carros prateados; disputavam apenas com o brilho de estrelas impossíveis que se apresentaram e da lua, que deixou de lado suas intrigas com o sol poente para poder mais iluminar o enterro.

O dia, deitado em seu caixão num cortejo de mil luzes, sorria. Nos últimos minutos conseguiu ser inesquecível para todos que o viveram. E foi assim, partindo lentinho, saboreando, descolorindo o céu de preto, puxando para si o manto estrelado da noite que vinha lhe sepultar.