domingo, 28 de abril de 2013

Reducto ad Eu Mesmo


Vou escrever um texto que não seja sobre mim. Um desses que não fala absolutamente nada sobre minha vida. Um texto completamente livre da minha presença incômoda. Segue o texto, cheio de eu.

Vejam as montanhas. Vejam os mares, os rios, os lagos, a chuva. O Planalto Central. Analisemos as favelas penduradas em morros, assistindo ao espetáculo. Paris, Texas, Londres, Braxília. Esquece o ego. Zera o ego, zera a reza, vamos falar de outras coisas. As estrelas e a metafísica, vamos pensar em nada. Os buracos negros que sugam tudo ao seu redor, a minha solidão - puta merda, reducto ad eu mesmo, vou parar de cair em mim. Se eu escrever sobre meus pares, estou falando do Arthur? Paremos com essa lenga-lenga de terapia escrita, de textos autobiograficamente expositivos. O importante é o átomo, a estrada, a rosa, Hiroshima e a condição humana. São os problemas de peso que esmagam a mesquinharia cotidiana. O problema é a razão e o empírico – estamos de piriri. Morte ao sou! Morte ao somos! Abaixo a identidade, abaixo a aparência, abaixo a essência, abaixo tudo que nos constitui. Busquemos a gravidade da existência fora do indivíduo. O que importa nessa vida não é a vida, é tudo que transcende a vida, tudo que cospe na vida, tudo que está cansado e entediado com a vida. O existir só existe enquanto zero – o zero que só foi existir com os árabes ou talvez antes diria alguém que sabe do que está falando. Como somos bobos, atrás do nosso sentido. O problema da humanidade é esse desejo colegial de encontrar a verdade. A verdade, se existe, é feia demais pros nossos olhos mal acostumados com as belezas desse mundo-cão-com-pedigree. A verdade é velha, torta, banguela e está cagando pra gente – a verdade fede de merda. Por isso digo: vejam as montanhas. Mares, rios, lagos etc. Esquece você, esquece eu, vamos nos esquecer, esquecer de quê?, a ideia é essa. Vejamos tudo que é além de nós. Mas o que é além de nós? Além de nós é só abismo. E a questão aqui é: o abismo está te encarando. Vai encarar?

segunda-feira, 15 de abril de 2013

Há Beleza


Há beleza no fim de tarde cheio de marasmo. Há beleza sentados na cama dos meus pais discutindo besteiras. Há beleza nas cinzas do cigarro e nas cinzas do meu avô; há beleza na banguela de São Paulo e na de minha avó; há beleza nos meus pés e aos meus pés também há beleza.

Há beleza nos sete pecados e há beleza nas sete virtudes; há beleza nas barbas cheias e há beleza nos rostos sem pelo; o ouro dos palácios ofusca a beleza, e há beleza no ouro dos palácios; há beleza no abismo e há beleza no eco; sem ela há beleza; no violão há beleza; no retrato envelhecido, esquecido e empoeirado do contraparente que nunca tive há beleza. Há beleza no seu tamanho, no seu minúsculo.

As cicatrizes do braço gritam coragem e sangram beleza; em tudo que a bailarina não tem há beleza e na bailarina beleza há; no amanhecer, há beleza; no entardecer, há beleza; no anoitecer, há beleza. Nas frases de efeito o belo se perdeu no tempo, mas continua; os templos são mais belos na devoção do povo.

No questionamento entediado dos filósofos sobre “o que é o belo” descansa, adormecida, a beleza. Na calça folgada a beleza escorre, perna acima, perna abaixo; no emaranhado de pernas da cama também há beleza. A beleza da grandiosidade é grande, a beleza pequeneza é grande.

A família reunida ao redor da mesa come beleza; os meninos na rua brincam com ela; há beleza nas mãos e no passo dos gatunos. Cai uma chuva lá fora e cai em beleza, os carros rodando águas e a lua refletindo sobre o que tem para a noite.

A tela do cinema, projetando nos espectadores o mundo, quer o belo; beleza também querem as letras que vadiam nas páginas amarelas. Belo belo quero quero, viver é fundamental. Há beleza na linha do horizonte e há também no beco. O beco é que mais importa. Qualquer cidadezinha também tem boniteza.

Na repetição de beleza há beleza.

O sentido de beleza perde-se na banalização, e na banalização a beleza floresce: por todo lado estão jardins – subterrâneos, suspensos, japoneses. As estrelas do céu e a formiga do chão se comunicam por beleza; o rio corre beleza e a beleza corre nos fios de cabelo do chefe do escritório, que parece ignorá-la mas que também sonha.

A beleza não é seletiva. A beleza não é moral. A beleza não julga. A beleza nos ri, morando nas coisas menores, ri do nosso desejo de mais. A beleza está esquecida em nós, mas a beleza está. A beleza há.

Em tudo construí uma casa, e nessa casa mora um corpo que me pergunta: “cabe quanto coração?”.

sábado, 13 de abril de 2013

No Hay Texto!: Irrelevância Nº 01


(Sobe a cortina sem aplausos)

No hay texto!

O que se lê aqui não é o que se lê. O autor não sabe nem nunca soube o que quis escrever. Letras se juntam em palavras, palavras em frases, frases em irrelevâncias. O que importa é o contexto, e o contexto não se é, só há trapaça. 

No hay texto!

Tudo é simulação. Eu escrevo simulação. Você capta simulação. Uma folha branca diria mais, mas sinceridade excessiva é patologia do espírito. Uma folha branca diria mais e não seria ouvida, pois uma folha branca não se repete, excetuando-se todas as vezes.

No hay texto!

Esgotaram-se as questões e só sobraram respostas. Não mais rasuramos: copiamos com excelência e com primazia. Eu sou a cópia da cópia da cópia da cópia, mas comparado à primeira eu sou muito mais original.

No hay texto!

Niilismo é facilidade. “Nada faz sentido, tudo é caos, a cerveja acabou”. As ideias fedem a mofo, mas ouvem aplausos de coisa nova. O oposto também é fácil. Tudo é fácil. Proponho aqui uma velha revolução: o sentido não há, mas existe em todas as coisas (alguém pergunta da plateia “e esse cheiro de naftalina?”).

No hay texto!

A mente aguenta impropérios. Hoje mesmo, enquanto a razão olhava pro outro lado, fiz flutuar uma bola e depois corri na velocidade da luz. Mas isso não é verdade. A verdade é que eu não sei, e eu não sei se é verdade.

No hay texto!

Voo sobre as asas de tudo o que penso e tudo o que penso não é mais do que uma pluma. O vento bate e leva a pluma embora e eu não voo mais. Mas vou.

No hay texto!

(Alguém pergunta da plateia “texto? Que texto?” Outro responde “esse que ele acabou agora”. Muitos dormem. Desce a cortina)

quinta-feira, 11 de abril de 2013

Velhice

Hoje me olhei no espelho e me vi velho. O rosto era o mesmo: mesmo cabelo bagunçado, mesma barba por fazer, mesmos olhos, boca e nariz. Mas todos velhos. Como se o tempo que eu não vivi franzisse o meu cenho e arqueasse as minhas costas. Todas as minhas experiências e inexperiências decidiram manchar-me a pele e tingir-me os dentes. Os meus primeiros passos, aquela verruga na ponta do queixo. As brincadeiras de infância com meu primo, as manchas pretas em minhas mãos. A minha primeira briga, as unhas longas e opacas. O meu primeiro beijo, aquela banguela. O meu primeiro amor, as pernas arqueadas. Meus pais, minha irmã, minha família, meus amigos, minhas conquistas, minhas derrotas, meus movimentos, meus desejos, minhas frustrações, meus conhecimentos, minha ânsia e meu vômito, tudo me marcando o corpo, tornando-me mais velho, mais sábio.

E após assistir no espelho a uma vida de 18 anos que parece se estender por 100 – parte por vivências, parte por angústias – você é o trecho que me envelhece mais. Você, que ao meu lado rejuvenesceu-me tantas vezes e com tanto prazer agora é a parte pior do meu delírio. Você é as minhas dores de velhice. Você, que comparada com a minha maioridade centenária não equivale a algumas estações, é as minhas dores de velhice, vinda em ondas. Aguda. Sofrida. Imobilizadora.